Por esses dias estava assistindo minha nova série preferida. Chama “Foundation”. Ja viu? Tem na Apple TV. É mais pra quem gosta do estilo Sci-Fi – mas ainda assim muito boa. O que mais me chama atenção nela é que através dos exageros de uma história onde tudo é aumentado – ela estabelece paralelos com a realidade.
Na nossa pequena terra do jeito que ela é, cada território pode ter diversas populações, diversas religiões. Na série cada população tem um planeta e uma religião pode permear diversos planetas.
“Mas Gael, onde você está indo com esse papo de doido?” – calma, que a gente jajá chega la.
Um dos dialógos na série que mais me chamou atenção foi quando um dos personagens principais reflete sobre a morte de um Deus. “Deuses são imunes a facas – então como morre um Deus? Simples, quando paramos de acreditar nele, quando acaba a fé neles”.
Eu fiquei um bom tempo remoendo essa história na cabeça – porque eu lembrava de alguma outra história muito semelhante que terminava exatamente assim. Eis que depois de muito custo me veio à memória: era uma história sobre a economia.
Já parou pra pensar no funcionamento básico de uma economia? A fundação base de uma economia é a troca. São transações feitas entre partes que se beneficiam mutuamente de duas coisas. Antigamente eu poderia trocar legumes por galinhas, sapatos por feijão, feijão por roupa, roupa por trabalho, trabalho por legumes, e assim por diante. Mas e se eu quisesse trocar legumes diretamente por roupas? Bem, eu teria que encontrar alguém precisando de legumes, pra trocar por roupas. Se a contraparte só se interessasse por sapatos, eu teria que trocar meus legumes por feijão e depois por sapatos, para só depois trocar pela roupa. Acho que entenderam a “impraticidade” da coisa.
Para resolver essa ineficiência toda nas trocas eis que o ser humano inventou o dinheiro (vamos pular a fase da troca na base de sal, por motivos de encurtar a história, mas só pra quem não sabia – a palavra salário vem literalmente do pagamento por sal). No inicio, composto só por moedas. Cada moeda era de um material valioso (tipo ouro, prata e cobre) e assim, qualquer pessoa poderia, então, vender coisas em troca de moedas e comprar outras coisas com moedas também, eliminando todo o intermédio.
Muito que bem, centenas de anos se passam e eis que o sistema bancário moderno mudou as coisas. Ao invés de cada um sair por ai com moedas de ouro e prata, durante a maioria do século 19 e inicio do 20, os bancos é que estocavam todo o ouro – e os cidadãos passam então a carregar apenas o chamado papel-moeda. O papel moeda nada mais era do que a garantia de um deposito equivalente em ouro. Em outras palavras, o valor do papel que alguém carregava, provinha diretamente do ouro depositado dentro dos cofres dos bancos. Era um valor conversível. Eu poderia ir com meu dinheiro (em teoria) e resgatar o equivalente em ouro.
Passam-se mais algumas décadas e chegamos ao famoso sistema Bretton-Woods. Isso foi quando, no pós-II Guerra Mundial, estabeleceu-se que os EUA seriam o grande cofre do mundo, vinculando o dólar ao ouro, e que todas as outras moedas do mundo seriam convertidas não mais em ouro, mas em dólar.
Eis que se passam mais algumas décadas e chegamos em 1971 – o fim do padrão ouro. A partir de então as moedas deixam de ter qualquer lastro no metal e entramos no famoso sistema de moeda fiduciária.
Sabe a origem da palavra “fiduciária”? Vem do latim “fiducia”, que significa confiança, fé ou segurança. A raiz dessa palavra está ligada a “fides”, que é a palavra latina para fé ou confiança. No contexto das transações financeiras e legais, “fiducia” envolve a ideia de confiança depositada em uma pessoa ou instituição. Então, para a sua possível surpresa, o valor da moeda que usamos hoje, não vem de nada mais do que a confiança que todos nós temos que ela valha alguma coisa.
Se eu deixar de acreditar amanhã que meu real no bolso vale alguma coisa, isso não necessariamente muda alguma coisa, até por que todas as outras pessoas vão continuar trocando em reais, mas e se todo mundo parar de acreditar junto? Agora sim, chegamos onde eu queria chegar.
Oras, se o valor de uma moeda é dado a partir da confiança que depositamos nela – então quando não há mais confiança, não há mais valor.
Essa perda de confiança pode se dar por várias causas – mas a causa maior é quando a população perde a fé de que o governo conseguirá sustentar o valor da moeda.
A Alemanha durante a república de Weimar enfrentou reparações de guerra exorbitantes, somado ao governo imprimindo dinheiro para pagar suas dívidas. A hiperinflação pegou e a moeda alemã, o marco, perdeu praticamente todo o seu valor, levando as pessoas a pesar o dinheiro em balanças em vez de contá-lo. Em seu auge, a inflação chegou a ser medida em trilhões por cento ao ano. No Zimbábue, em 2008, má gestão econômica e confisco de terras agrícolas levaram a confiança embora e, junto, o valor da moeda. A inflação chegou ao seu pico com 79,6 bilhões por cento no comparativo mensal. Sabe qual foi a inflação anual? 89 sextilhões (pode pesquisar).
Em exemplos mais próximos, a Argentina, em 1989, acumulando divida externa, gastos exagerados, impressão excessiva de moeda, e instabilidade política, chegando a registrar 3.000% ao ano de inflação. Uma crise que gerou sequelas das quais o paisito sofre até hoje. A Venezuela, com o colapso da economia sob Maduro registrou 59 milhões por cento de inflação entre 2016 e 2019.
Assim como – na filosofia – decreta-se a morte de um Deus à partir do momento em que não há mais crença nele, a morte da moeda se dá da mesma forma. A confiança que depositamos não apenas em nossas moedas, mas também em nossas instituições, sustenta o tecido de nossa vida econômica. As crises na Alemanha, no Zimbábue, na Argentina e na Venezuela são lembretes sombrios do que acontece quando essa confiança é quebrada, deixando para trás não apenas economias em ruínas, mas vidas desfeitas. Quando essa fé se esvai, enfrentamos não apenas a depreciação do papel em nossas carteiras, mas o desafio de reconstruir a confiança perdida.
Fica a reflexão: quem poderia imaginar que entidades tão imponentes e poderosas, tidas como indestrutíveis, teriam um ponto tão vulnerável, revelando que algo tão fundamental quanto a fé pode ser seu verdadeiro calcanhar de Aquiles?