As eleições nos Estados Unidos são um tema que sempre desperta curiosidade, e não é difícil entender por quê. O sistema eleitoral americano é, de fato, bastante singular, especialmente quando comparado a outras democracias consolidadas, como o Brasil.
Para começar, o processo de votação ocorre de forma descentralizada. No dia das eleições, que sempre cai em uma terça-feira de novembro, os cidadãos vão a locais de votação que podem ser escolas, igrejas, centros comunitários, entre outros. A escolha do dia, curiosamente, remonta ao século 19, quando o país era predominantemente rural e profundamente religioso. A votação não podia ocorrer no domingo, por motivos religiosos, e a segunda-feira foi descartada porque muitos eleitores precisariam viajar no domingo para votar. A quarta-feira, por sua vez, era dia de feira, restando a terça-feira como a melhor opção. E o mês de novembro foi escolhido por ser logo após a colheita, mas antes da chegada do inverno rigoroso.
Diferente do Brasil, onde o voto é obrigatório, nos EUA ele é facultativo. Isso levanta uma série de críticas, principalmente porque o dia de eleição não é feriado, o que afeta desproporcionalmente as populações mais pobres, que muitas vezes não podem se dar ao luxo de faltar ao trabalho para votar. Além disso, em vários estados, o voto pelo correio já começa cerca de um mês antes do dia oficial das eleições, uma prática que facilita a participação, mas que também é regulada de maneira diferente em cada estado, refletindo a estrutura federalista do país.
E é aqui que a complexidade realmente começa. As eleições nos Estados Unidos funcionam de uma maneira bem diferente da nossa realidade no Brasil, e muito disso se deve ao sistema do Colégio Eleitoral, que é o coração do processo. Esse colegiado é composto por 538 votos no total, e para vencer a presidência, um candidato precisa alcançar a maioria absoluta: 270 votos. Mas como esses votos são distribuídos entre os estados?
Cada estado tem um peso específico no Colégio Eleitoral, determinado pelo número de representantes que esse estado possui no Congresso Americano. O Congresso dos EUA é composto por duas casas: a Câmara dos Representantes e o Senado. O número de deputados de cada estado na Câmara é proporcional à população — quanto mais habitantes, mais deputados (isso é medido a cada 10 anos no Censo dos EUA). Por exemplo, a Califórnia, o estado mais populoso, tem 52 deputados, enquanto estados com menos população, como o Wyoming ou o Vermont, têm apenas 1 deputado cada.
Por outro lado, o Senado é composto por dois senadores de cada estado, independentemente da população. Assim, tanto a Califórnia quanto o Wyoming têm o mesmo número de senadores: 2. Isso significa que cada estado tem pelo menos 3 votos no Colégio Eleitoral, mesmo que sua população seja pequena, pois cada estado soma os seus 2 senadores mais o número de deputados. Isso é feito para dar um pouco mais de balanço e diminuir a desvantagem para estados menos populosos.
Agora, um ponto importante que muitas vezes causa confusão é o fato de que os votos no Colégio Eleitoral correspondem ao número de representantes no Congresso, mas não são essas mesmas pessoas que de fato votam. O que acontece é que, para cada eleição, os partidos políticos de cada estado escolhem eleitores — indivíduos que vão formalmente votar no presidente em nome do estado. Então, quando falamos dos 538 eleitores do Colégio Eleitoral, não estamos falando de deputados e senadores votando diretamente, mas sim de eleitores indicados pelos partidos.
Outra peculiaridade do sistema americano é que, em quase todos os estados, o candidato que vence a maioria dos votos populares no estado leva todos os votos eleitorais daquele estado. Isso é conhecido como o sistema de “vencedor leva tudo” (“winner-takes-all”), e significa que, se um candidato ganha por 51% em um estado como a Flórida, ele não recebe apenas 51% dos votos eleitorais da Flórida, mas sim todos os 30 votos eleitorais que o estado tem. Isso torna certos estados extremamente estratégicos, pois mesmo uma vitória apertada pode significar uma grande quantidade de votos no Colégio Eleitoral.
E é aí que mora outra complexidade do sistema. Nos EUA, mais importante do que vencer o voto popular nacional é vencer nos estados com maior peso eleitoral. Isso explica por que candidatos que perdem no voto popular geral podem ainda assim vencer a presidência — como foi o caso de George W. Bush em 2000 contra Al Gore, e de Donald Trump em 2016 contra Hillary Clinton.
Para fechar essa parte, vale lembrar que cada eleição é uma disputa em estados-chave, e como o sistema é centrado em garantir maioria nos estados e não no voto popular, a estratégia dos candidatos se foca muito mais em quais estados conquistar do que simplesmente em angariar mais votos gerais no país. Por isso, mesmo sendo uma das maiores democracias do mundo, os EUA têm um sistema onde a contagem de votos é mais complexa e muitas vezes inesperada.
Outro aspecto interessante é o predomínio de dois partidos, os Democratas e os Republicanos. Em muitos estados, os resultados são praticamente previsíveis, com os republicanos dominando em estados mais conservadores, como Texas, e os democratas mantendo o controle em estados mais liberais, como Califórnia. No entanto, existem os chamados “swing states”, ou estados pêndulos, onde a disputa é mais acirrada e pode inclinar para qualquer um dos dois lados. Nas últimas eleições, estados como Flórida, Pensilvânia e Michigan têm sido decisivos. Daí a importância dada nas campanhas eleitorais dos EUA aos Swing States: são basicamente eles que definem as eleições.
No final das contas, entender as eleições nos EUA é entender que o voto não se trata apenas de quem tem mais apoio popular, mas sim de uma estratégia focada em vencer nos estados certos, com o objetivo de conquistar os tão almejados 270 votos no Colégio Eleitoral, a maioria necessária para garantir a presidência. E essa é uma das razões pelas quais, muitas vezes, as eleições americanas surpreendem o mundo.
O Clima Eleitoral
Agora que já cobrimos o funcionamento das eleições americanas, vamos nos aprofundar no clima eleitoral deste ano. O que está em jogo? Quais são as estratégias de cada partido? E, principalmente, quem pode sair vencedor?
As eleições de 2024 nos Estados Unidos têm sido marcadas por uma polarização intensa. De um lado, os republicanos, com uma mensagem de conservadorismo social, protecionismo econômico e foco no medo do eleitor. Do outro, os democratas, agora com Kamala Harris na liderança do ticket, promovem uma mensagem de esperança, união e renovação política.
Estratégias Republicanas
Os republicanos estão ancorando sua campanha em valores tradicionais, focando na preservação da “família nuclear” — aquela configuração clássica de pai, mãe e filhos — como o pilar da sociedade americana. Eles são os defensores de um retorno ao “AmericaFirst”, uma política de proteção da indústria nacional com a ideia de reduzir a dependência a industrias estrangeiras, como a chinesa, fortalecendo a produção doméstica. No campo econômico, apostam em cortes de impostos corporativos para impulsionar a economia, enquanto aumentam tarifas sobre importações. Essa estratégia vem junto com uma postura de isolacionismo, diminuindo o envolvimento internacional dos EUA, especialmente em conflitos externos.
Donald Trump, o principal nome republicano, defende que os EUA estão gastando muito com conflitos no exterior, como na Ucrânia e em Israel, e sugere que o apoio seja limitado ou transformado em empréstimos. Para ele, esses conflitos precisam ser resolvidos rapidamente, sem muitos detalhes sobre o que isso significa em termos práticos. No campo climático, a posição republicana é clara: Trump e outros líderes do partido frequentemente minimizam a gravidade das mudanças climáticas, o que se reflete na oposição a regulamentações ambientais rigorosas.
Os republicanos também têm investido em discursos populistas, centrados em questões de imigração, com propostas de deportações em massa e controle rígido das fronteiras. Esse discurso é alimentado com um sentimento de medo, com mensagens de que uma vitória democrata poderia transformar os EUA em uma “Venezuela” e trazer imigrantes e refugiados que, segundo a narrativa, representariam uma ameaça econômica e cultural. O aborto, um dos grandes temas dessa eleição, também é uma bandeira republicana: após a reversão da decisão Roe v. Wade pela Suprema Corte, Trump defende que a legislação sobre o aborto deve ser decidida por cada estado.
Estratégias Democratas
No lado democrata, a narrativa é outra. Com Kamala Harris à frente da chapa, após a decisão de Joe Biden de não concorrer à reeleição, os democratas estão apostando em uma mensagem mais positiva de esperança e união. Harris, que busca ser a primeira mulher presidente, tem focado em propostas para melhorar a vida das famílias americanas, especialmente aquelas mais vulneráveis. Entre suas promessas estão incentivos fiscais para famílias de baixa renda, apoio a pequenos negócios e investimento em educação e saúde pública.
No campo econômico, os democratas acreditam em uma presença maior do governo, não só para regular, mas também para atuar como um motor de crescimento. Embora mantenham a China como adversária geopolítica, defendem um comércio menos restritivo do que o proposto pelos republicanos. No plano internacional, a posição é clara: os EUA devem continuar liderando fóruns internacionais e estar à frente de esforços diplomáticos e geopolíticos. Isso inclui apoio total a Israel, mesmo quando há críticas ao governo de Netanyahu, e uma posição firme em relação à Ucrânia, liderando o envio de ajuda financeira e militar.
Os democratas também defendem uma agenda climática mais progressista, buscando retomar acordos como o de Paris e implementar medidas para combater as mudanças climáticas. Na questão da imigração, Harris defende que os imigrantes são importantes para a economia americana, propondo uma regulação mais clara e justa que permita uma imigração contínua, porém controlada. E, no tema do aborto, a candidata democrata sustenta que este deve ser um direito garantido a todas as mulheres, defendendo que a questão seja tratada como uma questão de saúde pública e não como um tema moral.
Quem leva?
Apesar das diferenças ideológicas entre os dois partidos, um tema que se destaca acima de todos os outros nesta eleição é a inflação. Após o impacto econômico da pandemia de COVID-19, a inflação nos EUA disparou, e isso tem sido uma das principais preocupações dos eleitores. De acordo com uma pesquisa recente da IPSOS, o candidato que melhor conseguir apresentar soluções concretas para a crise inflacionária terá uma vantagem considerável nas urnas – e por hora, quem tem sido percebido pelo publico como melhr abordando o tema da economia, é Trump.
Ao mesmo tempo, outra pesquisa da mesma IPSOS indica que, embora os EUA estejam cada vez mais polarizados, a maioria crescente dos americanos se identifica como progressista, o que poderia beneficiar os democratas. Esse fator pode explicar a leve vantagem de 2,4 pontos percentuais que Kamala Harris tem sobre Donald Trump nas pesquisas nacionais, de acordo com os levantamentos mais recentes.
No entanto, como já vimos, nos EUA o voto popular não é decisivo. O verdadeiro campo de batalha são os estados, especialmente os “swingstates”, onde a disputa é mais acirrada e qualquer pequeno movimento pode definir o resultado final. Estados como Flórida, Pensilvânia, Michigan e Wisconsin são os que todos estão de olho, pois a vitória nesses estados pode ser o que decidirá quem será o próximo presidente dos Estados Unidos.
Estamos, portanto, diante de uma eleição apertada, com um país polarizado e com temas centrais como a inflação e os direitos individuais em jogo. Embora as pesquisas atuais favoreçam Harris, o sistema eleitoral americano tem suas surpresas, e uma vitória de Trump ainda é uma possibilidade real – ainda mais somado ao fato de ser o candidato que tem melhor percepção pelo eleitorado em relação a temas de economia. Tudo dependerá de como os eleitores dos estados-chave se comportarem no dia da eleição.