Cenário Internacional
A polĂtica monetária atualmente enfrenta um dilema global. Independente das tensões geopolĂticas e da necessidade de implementar mudanças estruturas em algumas nações, Ă© desafiador argumentar que existe um excesso considerável de demanda global, inclusive nos Estados Unidos. Por outro lado, há uma preocupação legĂtima em relação Ă inflação.
A inquietação com a inflação deriva da possibilidade de uma inĂ©rcia na elevação dos preços dos serviços, da redução menos acentuada dos preços industriais e da potencial propagação de choques nos preços da energia pelas economias. AlĂ©m disso, existe uma preocupação mais velada com a sustentabilidade fiscal diante dos gastos relacionado Ă Covid-19, ao envelhecimento populacional, Ă s restrições ao comĂ©rcio e aos riscos climáticos. Nos Estados Unidos, observa-se um desconforto peculiar entre as pessoas, mesmo com o crescimento do PIB, baixo desemprego e queda da inflação. Tal desconforto Ă© atribuĂdo por alguns aos preços dos serviços que ainda estĂŁo subindo mais de 3% ao ano e por outros ao sentimento de que os salários nĂŁo acompanharam o aumento dos preços desde a pandemia.
De fato, houve um aumento nos preços em todo o mundo, e a inflação nos Estados Unidos nĂŁo diminuiu tĂŁo rapidamente em 2024. No entanto, sua disseminação, ou seja, a proporção de itens com aumentos nos preços, está prĂłximo dos nĂveis prĂ©-pandemia. Essa menor disseminação sugere mais um ajuste nos preços relativos do que um aumento generalizado de preços tĂpico de inflação persistente.
Mesmo nos serviços, mais da metade dos preços cresceu menos de 0,2% em Março de 2024, proporção semelhante Ă prĂ©-pandemia e significativamente maior do que em março de 2022 e 2023. A maior diferença em relação ao perĂodo prĂ©-pandĂŞmico Ă© a persistĂŞncia de um grupo limitado de serviços que tĂŞm aumentado mais de 0,5% ao mĂŞs.
Infelizmente, os Ăndices de preços nos Estados Unidos sĂŁo notoriamente voláteis, em grande parte devido a razões tĂ©cnicas. Por exemplo, o Ăndice de habitação nĂŁo se concentra apenas no aumento dos novos aluguĂ©is, mas na variação do custo da moradia para a mĂ©dia das pessoas, incluindo aquelas que possuem residĂŞncia prĂłpria. Assim, o cálculo desses Ăndices requer hipĂłteses e ajustes tĂ©cnicos que podem confundir aqueles que buscam um sianl de curto prazo, como ocorreu em janeiro recentemente. A inflação nos serviços tambĂ©m pode ser volátil devido Ă forma como a variação nominal do consumo Ă© decomposta entre preço e quantidade. A incerteza dessa decomposição, especialmente no caso dos serviços de saĂşde, e a estimativa dos efeitos sazonais tambĂ©m tĂŞm sido ampliadas pela interrupção das sĂ©ries temporais causada pela pandemia.
AlĂ©m disso, há ambiguidade quando se analisa o consumo. Sua aparente robustez tem preocupado analistas que clamam por aumentos nas taxas de juros. De fato, a transmissĂŁo da polĂtica monetária para o consumidor tem sido mais lenta do que o habitual, pois as famĂlias tĂŞm menos dĂvidas do que no passado e as dĂvidas existentes geralmente possuem juros prĂ©-fixados, sendo pouco sensĂveis Ă s ações do Banco Central. AlĂ©m disso, as failias ainda tĂŞm economias acumuadas durante a pandemia e se beneficiaram do aumento do valor das ações, que subiram recentemente US$4 trilhões (quase 20% do PIB americano), o que sustenta o consumo.
As empresas tambĂ©m estĂŁo pouco endividadas e com bons lucros: o endividamento nominal delas aumentou apenas 1,5% no Ăşltimo ano, com queda nos emprĂ©stimos e estagnação nos tĂtulos corporativos.
No entanto, existem fissuras no panorama do consumo, com o aumento da inadimplĂŞncia e um crescimento nominal das vendas no primeiro trimestre de 2024 provavelmente em torno de apenas 0,1%. Apesar de uma certa disposição dos bancos em renegociar as dĂvidas, a aversĂŁo ao crĂ©dito Ă© significativa, especialmente entre os bancos – especialmente os mĂ©dios e pequenos – que tĂŞm enfrentado as maiores perdas com o aumento das taxas de juros. Menos crĂ©dito e o provável esgotamento das economias acumuladas durante a pandemia, juntamente com os modestos aumentos salariais, apesar do baixo desemprego, e as medidas de austeridade fiscal em andamento, acabarĂŁo por esfriar o consumo. O impulso fiscal que acrescentou 1 ponto percentual ao PIB em 2023, ajustado pelo
cancelamento do perdão dos empréstimos estudantis, será negativo este ano, à medida que o déficit primário federal cai de 5% para 2,7% do PIB.
Outro sinal de moderação na economia é a redução do déficit em conta corrente dos Estados Unidos nos últimos tempos.
Conforme observado pelo Federal Reserve, o dinamismo da economia americana se deve, em parte, Ă expansĂŁo da oferta impulsionada pelas novas tecnologias e ao correspondente aumento da produtividade do trabalho, bem como ao aumento da imigração. O nĂşmero anual de novos imigrantes saltou da mĂ©dia de 0,9 milhĂŁo no perĂodo prĂ©-pandemia e dos menos de 500 mil em 2020 para 2,7 milhões em 2023, com projeção de chegar a 3 milhões em 2024, contribuindo com 4 milhões de pessoas para a oferta de trabalho durante esse perĂodo.
O Federal Reserve tem respondido de forma imaginativa Ă ambiguidade dos indicadores, mantendo-se fundamentado nos dados. Independentemente de qualquer certeza sobre a taxa de juros “neutra”, tem ficado evidente que o custo reputacional e polĂtico de permitir que a inflação acelere, apesar dos sinais de desaceleração da economia e dos preços, Ă© maior do que o de manter as taxas de juros onde estĂŁo. A inflação afeta a todos, enquanto as taxas de juros nĂŁo estĂŁo aumentando as prestações das hipotecas ou prejudicando significativamente as empresas.
Portanto, manter as taxas de juros pelo Federal Reserve no atual patamar atĂ© que os sinais de desaceleração da economia sejam inequĂvocos nĂŁo Ă© tĂŁo oneroso para outros paĂses, especialmente os mais frágeis e endividados. Isso pode agravar a saĂda de capital dos paĂses emergentes, como indicado pelo relatĂłrio Summers-Singh divulgado no recente encontro das instituições de Bretton Woods, com impacto no desenvolvimento global.
Cenário Doméstico
Indubitavelmente, observamos melhorias de curto prazo que fomentam um certo otimismo em relação Ă economia. O mercado de trabalho demonstra notável dinamismo, com um crescimento na massa real de salários, e a inflação tem se tornado mais benigna nos Ăşltimos meses, permitindo que o Banco Central reforce o processo de afrouxamento monetário. Algumas instituições financeiras já prognosticam uma taxa Selic de 8% para o final deste ano. Curiosamente, o Governo Federal aproveitou escassamente esse perĂodo de prosperidade econĂ´mica e cedeu Ă s pressões de um ambiente de deterioração das relações entre os poderes.
Entretanto, no campo econĂ´mico, as expectativas em relação ao futuro desempenham um papel muito mais significativo do que as realizações passadas. O relatĂłrio Focus desta semana evidencia que o mercado penaliza os governos que nĂŁo conseguem ancorar as expectativas. Internacionalmente, há motivos de sobra para a incerteza, com a escalada dos conflitos internacionais e o aumento das dĂşvidas sobre a polĂtica monetária dos Estados Unidos. Internamente, o governo nĂŁo está contribuindo para a estabilidade. Possivelmente, o maior equĂvoco recente do governo foi o anĂşncio do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), com a alteração das metas fiscais, postergando para o prĂłximo ano a meta de dĂ©ficit primário zero. Esse anĂşncio foi acompanhado por confusões relacionadas a abatimentos contábeis envolvendo estimativas dos gastos com precatĂłrios, ou seja, as despesas resultantes de decisões judiciais. e no emprego.
A questĂŁo Ă© simples. Ao alterar a meta de superávit primário para 2025 e 2026, zero e 0,25% do PIB, respectivamente, o governo sugere ao mercado ideias prejudiciais de falta de compromisso com a consolidação fiscal e a estabilidade da relação entre a dĂvida pĂşblica e o PIB. O Novo Arcabouço Fiscal, conforme estabelecido na Lei Complementar nÂş 200, de 30 de agosto de 2023, já foi recebido com algum ceticismo, quando se previa que seu desenho nĂŁo permitiria a estabilidade da dĂvida pĂşblica.
Simultaneamente, o governo insiste em buscar resultados fiscais exclusivamente pelo lado das receitas, o que sabemos não ser sustentável. Agora, altera metas que já eram conservadoras e, com isso, deixa uma grande interrogação na mente do mercado. O relatório Focus desta semana já refletiu isso com um aumento nas expectativas de inflação, e algumas instituições financeiras duvidam que a Selic chegará a 9,50% no final do ano.
Ainda há espaço para corrigir os erros na condução da polĂtica fiscal. Existem áreas de despesas que podem ser ajustadas. A maior dessas despesas Ă© a previdenciária, que já ultrapassa 8% do PIB, seguida por Pessoal e Encargos, que representam outros 3,2% do PIB, e BPC/LOAS, Bolsa FamĂlia e Abono e Seguro Desemprego, totalizando 3,1% do PIB.
Com o ritmo de crescimento dessas despesas, consideradas obrigatórias, logo não haverá espaço no orçamento para investimentos.
Em 2014, durante uma profunda crise institucional, com o avanço da Operação Lava Jato e uma reeleição altamente polarizada da entĂŁo Presidente Dilma Rousseff, o governo implementou diversas medidas de contenção de gastos, como a introdução de critĂ©rios mĂnimos de elegibilidade para o benefĂcio da pensĂŁo por morte, reformas no abono salarial e no seguro-desemprego, medidas administrativas no auxĂlio-doença, revisĂŁo do segurodefeso, entre outras.
Para ancorar as expectativas, seria muito oportuno que o governo realizasse estudos para ajustar o lado das despesas, promovesse a reforma administrativa e avaliasse medidas adicionais no campo da previdĂŞncia social. Ainda há tempo. O mercado penaliza, mas tambĂ©m recompensa. O contexto internacional requer extrema cautela. A gestĂŁo de uma polĂtica fiscal sĂłlida Ă© crucial nessas circunstâncias globais delicadas.
Enquanto isso, o Congresso Nacional parece ignorar a responsabilidade fiscal, conforme evidenciado pelo jogo de gato e rato em torno das propostas de limitação de supersalários de funcionários pĂşblicos e dos quinquĂŞnios para juĂzes e procuradores, que podem se estender aos membros da Advocacia-Geral da UniĂŁo, da Defensoria PĂşblica e delegados da PolĂcia Federal.
Entre os diversos cenários apresentados pelo RelatĂłrio de Projeções Fiscais da Secretaria do Tesouro Nacional, divulgado em março, estamos muito prĂłximos de tornar o orçamento pĂşblico definitivamente ingovernável e avançando rapidamente em direção a um aumento significativo da dĂvida pĂşblica. Se esse cenário se confirmar, o paĂs experimentará grande volatilidade e incerteza, refletindo-se nos investimentos, no crescimento e no emprego.