CenƔrio Internacional
Enquanto os mercados estĆ£o precificando quase 1 ponto percentual de queda nos juros pelo Federal Reserve (Fed) em 2024, baseando-se em um cenĆ”rio de desaceleração do mercado de trabalho e da economia americana como um todo, torna-se difĆcil ignorar os riscos associados a essa aposta quando os preƧos da gasolina vĆŖm caindo significativamente nos Estados Unidos. Isso pode proporcionar mais um fĆ“lego Ć resiliĆŖncia atual dos gastos dos consumidores.
Em outras palavras, quanto o Fed ainda pode ter que enfrentar um consumo mais robustodo que inicialmente previsto neste momento de sua polĆtica monetĆ”ria, especialmente quando as medidas de inflação subjacente estĆ£o desacelerando em um ritmo mais lento do que o desejĆ”vel?
Recentemente, por exemplo, no dia seguinte ao feriado de Thanksgiving, o preço médio do galão de gasolina nos EUA estava custando um pouco menos de US$ 3,26, registrando uma queda de quase 10% em apenas um mês. Esse foi o menor preço da gasolina desde o feriado de Ação de Graças de 2020. Além disso, o preço do diesel jÔ diminuiu mais de US$1 por galão ao longo do último ano.
Essas mudanƧas refletem diretamente a queda nos preƧos do petróleo. Desde o final de setembro, o preƧo do barril do petróleo Brent jĆ” caiu quase 17%. Dado que combustĆveis sĆ£o itens de grande peso no orƧamento das famĆlias americanas, Ć© importante considerar o impacto que uma queda adicional nos preƧos da gasolina poderĆ” ter nos gastos durante o tradicional e forte perĆodo de vendas no varejo das festas de fim de ano, como o Natal. Vale ressaltar que, em outubro, as vendas no varejo americano caĆram 0,1% em relação a setembro, enquanto a previsĆ£o era de uma queda maior, de 0,3%.
O que chama a atenção Ć© que o “grupo de controle”, excluindo vendas de automóveis, material de construção, gasolina e serviƧos de alimentação, registrou um aumento de 0,2% em outubro. Apesar de uma desaceleração em relação Ć alta revisada de 0,9% em setembro, o desempenho desse grupo foi melhor do que o indicador principal. O grupo de controle de vendas no varejo Ć© monitorado de perto, pois Ć© usado nos cĆ”lculos do PIB americano.
NĆ£o Ć© surpreendente que haja grandes expectativas para os nĆŗmeros finais das vendas durante a Black Friday nos EUA. Apenas na quinta-feira, dia de Thanksgiving, quando a maioria das lojas fĆsicas estava fechada no paĆs, as compras online dos consumidores americanos somaram US$ 5,6 bilhƵes, um aumento de 5,5% em comparação com o dia de Thanksgiving de 2022, segundo dados da Adobe Analytics. Assim, a queda nos preƧos de energia pode proporcionar um alĆvio adicional ao consumo nos EUA e, por conseguinte, ao desempenho da atividade econĆ“mica.
A precificação otimista do mercado em relação aos cortes de juros pelo Fed em 2024 estĆ”, de certa forma, negligenciando a possibilidade de que a atividade econĆ“mica dos EUA possa surpreender positivamente neste quarto trimestre. Tanto que o monitor do PIB do Fed de Atlanta (“Atlantaās Fed GDP Now”) – referĆŖncia para economistas e investidores – foi revisado para cima, passando de uma taxa anualizada de crescimento de 2,0% para 2,1%.
CenƔrio DomƩstico
O El NiƱo tornou-se uma preocupação significativa nos mercados devido ao nosso potencial impacto na produção agrĆcola e nos preƧos – duas variĆ”veis que desempenharam papĆ©is cruciais na sólida performance econĆ“mica do Brasil em 2023. Duas questƵes importantes surgem: em primeiro lugar, devemos considerar a possibilidade de um cenĆ”rio de El NiƱo extremo? Em segundo lugar, em que medida o risco associado ao El NiƱo jĆ” estĆ” refletido nas nossas expectativas?
Esse fenĆ“meno climĆ”tico tem a caracterĆstica de alterar a distribuição de umidade e as temperaturas em vĆ”rias partes do planeta, especialmente na zona tropical. Isso pode resultar em secas no centro do continente americano e chuvas intensas em suas extremidades. No caso do Brasil, isso se traduz em seca nas regiƵes Norte e Nordeste e chuvas no Sul. Embora isso ocorra com certa frequĆŖncia, excluindo anos de eventos extremos, nĆ£o costumamos observar um impacto significativo do El NiƱo nos resultados do PIB agrĆcola brasileiro e/ou na inflação de alimentos, graƧas ao avanƧo tecnológico que triplicou a produtividade da terra desde a dĆ©cada de 80. Desde 1950, tivemos 27 eventos de El NiƱo, sendo apenas trĆŖs extremos (1982/1983, 1997/1998 e 2015/2016).
A questĆ£o crucial Ć© se estamos diante de um novo El NiƱo extremo. Atualmente, Ć© prematuro determinar a intensidade desse efeito. A anĆ”lise topogrĆ”fica da superfĆcie oceĆ¢nica pelo Jet Propulsion Laboratory da NASA indica que os impactos do El NiƱo de 2023 devem ser predominantemente sentidos nos trópicos, mas seu efeito global pode nĆ£o ser tĆ£o abrangente ou duradouro como em 1997 ou 2015. No entanto, os registros tĆ©rmicos no Oceano PacĆfico Equatorial aumentaram de 0,5°C acima da mĆ©dia em maio para 1,5°C acima da mĆ©dia em setembro, segundo relatório da Organização Meteorológica Mundial. Embora isso isoladamente nĆ£o indique a iminĆŖncia de um El NiƱo extremo nos trópicos, Ć© forte o suficiente para alertar que a condição climĆ”tica deve ser considerada como um risco relevante nas nossas projeƧƵes para 2024.
O pico do efeito do El NiƱo geralmente ocorre entre novembro e janeiro, com os impactos econĆ“micos se materializando ao longo do ano seguinte, especialmente no primeiro semestre. Para compreender a magnitude desse potencial efeito, Ć© vĆ”lido recordar o caso de 2015/2016, o Ćŗltimo El NiƱo extremo que afetou o Brasil. Isso resultou em uma queda de produtividade agrĆcola de -11%, com quebra na produção total de grĆ£os de -10%. Com isso, o PIB AgropecuĆ”rio em 2016 registrou uma contração histórica de -5,2%, e a inflação de alimentos aumentou 6 pontos percentuais entre setembro de 2015 e outubro de 2016. Nem as expectativas de inflação nem as projeƧƵes de produção parecem, em nossos nĆveis atuais, incorporar um El NiƱo extremo.
O primeiro prognóstico do levantamento da produção nacional de grĆ£os, cereais, leguminosas e oleaginosas para 2024 aponta para uma queda de 2,8% na produção de grĆ£os, com destaque para a produção de feijĆ£o, milho e soja. Vale ressaltar que essa queda projetada ocorreria após a supersafra de 2023, tornando o nĆŗmero aparentemente modesto e ainda menos negativo quando considerado que parte de uma base particularmente alta. O mesmo pode ser observado em relação ao prognóstico de produção por regiĆ£o: o levantamento aponta crescimento de 41,2% na produção no Rio Grande do Sul e queda de 9,6% no ParanĆ”, regiĆ£o afetada pelo El NiƱo com chuvas abundantes, assim como -6,2% no PiauĆ, -2,9% na Bahia e -0,9% no MaranhĆ£o – a nova fronteira agrĆcola conhecida como MATOPIBA, onde o efeito Ć© de seca intensa.
Apesar do prognóstico otimista, a realidade estĆ” se revelando menos otimista. A primeira safra no sul do paĆs, de trigo, estĆ” atrasada devido Ć s chuvas, afetando o plantio subsequente de soja e milho. A regiĆ£o Centro-Oeste tambĆ©m indica atrasos no plantio dessas culturas.
Quanto Ć s expectativas de inflação, dados da pesquisa realizada pelo Banco Central Ć s vĆ©speras da reuniĆ£o de polĆtica monetĆ”ria de 1Āŗ de novembro sugerem que o consenso para a inflação de 2024 em 3,91% nĆ£o parece incorporar um El NiƱo extremo. A mediana das estimativas fornecidas pelos noventa analistas consultados aponta para um efeito potencial de 60 pontos-base sobre a inflação de 2024, dos quais apenas 15 pontos estariam incorporados em suas projeƧƵes para o ano. Vale notar que as respostas refletem uma grande incerteza sobre os impactos do El NiƱo, com as estimativas oscilando entre 42 e 100 pontos.
O nosso cenĆ”rio base reflete um caso moderado de El NiƱo, mas diante do risco, Ć© vĆ”lido considerar o cenĆ”rio de 2024 em um caso extremo. Assumindo um efeito tĆ£o forte quanto o de 2016, a queda na produção agrĆcola poderia retirar 0,4 ponto percentual do crescimento do PIB, enquanto o aumento nos preƧos de alimentos essenciais como feijĆ£o, soja e milho adicionaria diretamente 0,7 ponto percentual ao IPCA – com possĆveis efeitos de segunda ordem nos preƧos de serviƧos, por exemplo.
Com base no consenso atual da pesquisa Focus, tais efeitos levariam o crescimento do PIB para cerca de 1% – uma desaceleração significativa em relação aos 2,8% estimados para 2023 – enquanto a inflação poderia ultrapassar o intervalo de tolerĆ¢ncia da meta de inflação (3%, com tolerĆ¢ncia de 1,5% a 4,5%). Mesmo que o aumento da inflação devido a um choque de oferta nĆ£o seja respondido com polĆtica monetĆ”ria, Ć© razoĆ”vel supor que a materialização de um El NiƱo extremo teria o potencial de afetar adversamente as perspectivas econĆ“micas, atrasando possivelmente o processo de normalização dos juros.