A gestora de recursos Kinea, ligada ao Banco Itaú, publicou, nesta semana, sua carta mensal destinada aos cotistas de seus fundos e investidores em geral.
A publicação traça um paralelo entre a situação econômica global e o filme japonês Rashomon, de Akira Kurosawa, lanaçado em 1950.
O filme, que é considerado um marco do cinema mundial, conta a história de um assassinato sob quatro perspectivas diferentes, “levantando questões sobre a verdade e a subjetividade das percepções humanas”.
O longa-metragem é tão relevante que criou o termo “efeito Rashomon”, que resume situações em que diferentes pontos de vista dão relatos contraditórios sobre o mesmo evento, algo que, na visão da gestora, é o que acontece atualmente.
Pouso suave ou forçado?
Nos Estados Unidos, os recentes dados de inflação indicam que ela converge à meta de 2% do Federal Reserve (FED), banco central norte-americano, o que traz o “conforto necessário” para que a autoridade monetária sinalize que seu primeiro corte deve ocorrer este mês.
De acordo com a gestora, o “efeito Rashomon” do paÃs está no mercado de trabalho, com um aumento na taxa de desemprego mesmo com a manutenção de números de geração de empregos sólidos.
“A narrativa assume diferentes perspectivas, e essas nuances geram conclusões com implicações diferentes para a profundidade dos cortes de juros pelo Fed”.
Esse fenômeno é ocasionado, para a Kinea, por uma maior oferta de trabalho, puxada pelo aumento constante da imigração ao longo dos últimos meses.
“Um mercado de trabalho puxado pela oferta elevada seria confirmado pela convergência dos salários e da inflação de serviços, sendo essas variáveis que não mais preocupam a autoridade monetária norte-americana”, afirma.
Para a gestora, a maior economia do mundo se encontra numa posição interessante, com o mercado de trabalho em desaceleração mesmo com a atividade econômica indicando distância para uma eventual recessão.
“Embora próximo ao potencial, parece improvável uma grande reaceleração do PIB no curto prazo que reverta a exaustão de um mercado de trabalho em fim de ciclo. Com números inflacionários convergentes, o conjunto dos dados deve permitir ao banco central iniciar seu ciclo de cortes, eventualmente acelerando o ritmo se o desemprego seguir subindo na velocidade atual”, conclui.
Mesmo nesse contexto, ela acredita que, com a precificação atual da curva de juros norte-americana, oportunidades melhores se encontram fora dos Estados Unidos, citando, particularmente, o Reino Unido e a Austrália.
“Consideramos que o processo desinflacionário tem caracterÃsticas globais e deve continuar a ser refletido nas demais geografias”, explica.
Sobe ou não sobe?
Seguindo, a gestora passa a analisar o “efeito Rashomon” brasileiro.
“Por um lado, parte dos investidores consideram que, com números inflacionários ainda bastante controlados no Brasil, e com os Estados Unidos iniciando seus cortes de juros em setembro, não haveria necessidade de a autoridade monetária iniciar, neste momento, uma nova rodada de aumento de juros. Com a Selic ainda em patamar restritivo, a melhor saÃda para o Banco Central seria manter a taxa de juros elevada por um perÃodo prolongado”, comenta.
“Uma outra narrativa considera que, mesmo controlada, a inflação estaria acima da meta de 3%, e que, aliado à deterioração das expectativas e dados de atividade mais fortes, poucas opções restariam ao Banco Central que não iniciar um novo processo de subida de juros já na próxima reunião”.
Para a Kinea, o discurso adotado pelo BC e seus integrantes guia o mercado para a segunda narrativa, com a autoridade monetária do paÃs tentando restabelecer a confiança do mercado após a decisão dividida do Comitê de PolÃtica Monetária (Copom) de Maio.
Essa busca tem seu preço, com o mercado revisando para cima suas estimativas para a taxa Selic, reprecificando a curva de juros brasileira em 100 pontos-base (1,0 ponto percentual) para as três reuniões restantes no ano.
Na sua visão, uma alta pode até acontecer, mas mesmo que o Copom opte por manter os juros, o diferencial frente à taxa norte-americana, que deve cair, junto com uma visão mais construtiva para o fiscal no curto prazo, pode ajudar a apreciar o real.
A situação chinesa
O terceiro “efeito Rashomon” analisado pela gestora é a China, que apresenta “um conjunto conflitante de narrativas sobre as implicações da desaceleração” econômica do paÃs.
“Por um lado, os dados econômicos continuam a indicar desaceleração em diversas áreas da economia, com reflexo nos dados de crédito e vendas residenciais, e uma nova queda no preço do minério de ferro”, comenta.
“Por outro lado, os ativos chineses seguem suportados pelos cortes de juros que se aproximam nos EUA, juntamente com a subida de Kamala Harris nas pesquisas, muito menos focada em tarifas comerciais do que seria Donald Trump”.
A gestora argumenta que “a prova do pudim” ainda está no “constante fechamento dos juros, que continuam a indicar um processo difÃcil para a economia chinesa”, algo similar ao que ocorreu com as economias ocidentais após a crise de 2008.
“No entanto, para o curto prazo, o fator mais importante é que ainda consideramos a eleição de Donald Trump como mais provável e, consequentemente, sua agenda comercial como grande risco para a moeda chinesa”, acrescenta, projetando uma vitória do candidato republicano sobre Kamala Harris.
Sendo assim, ela segue vendida em yuan chinês como uma proteção para as posições compradas que sustenta em mercados emergentes de desenvolvidos.
Por que as ações corrigiram?
Finalizando sua análise dos “efeitos Rashomon” globais, a Kinea comenta sobre a recente correção acentuada que os mercados de ações enfrentaram, no começo do mês passado.
A primeira narrativa leva em consideração “a desaceleração observada em segmentos da economia global, como no
caso dos PMIs e outros indicadores antecedentes, estaria causando uma expectativa de redução no
crescimento de lucros globais, juntamente com uma reversão no otimismo com o crescimento da inteligência
artificial”.
Já a segunda argumenta que a turbulência teria sido ocasionada, primeiramente, por uma rotação do setor de tecnologia para setores mais sensÃveis ao esperado corte de juros nos Estados Unidos, processo que teria sido tumultado por um evento de volatilidade por “stop” de posições vendidas em iene, do Japão.
Para a gestora, a “verdade está em algum lugar no meio” dessas duas visões.
Olhando para o mercado local, ela destaca o recente fim da temporada de balanços, que trouxe “resultados construtivos e, em muitos casos, acima das expectativas”, e a volta do fluxo de investidor estrangeiro.
Dessa maneira, ela permanece comprada na bolsa norte-americana, com foco nos setores de tecnologia e aéreas, acreditando que eles devem se beneficiar do ciclo de corte nos juros do paÃs, enquanto que, por aqui, apesar de estar mais construtiva com alguns nomes, ela mantém posicionamento neutro.
“Como hedge, permanecemos vendidos em alguns setores europeus, como quÃmicos e luxo, além de posições vendidas nos demais mercados emergentes, com ênfase para o mercado chinês”, acrescenta.
Em Agosto, o Kinea Atlas FIM, principal fundo da casa, registrou rentabilidade de 0,61% contra 0,87% do CDI. No ano, o fundo acumula alta de 4,25% ante 7,10% do seu Ãndice de referência.